Por MRNews
Por EBC,
No interior do Uruguai, no povoado de Tala, a 100 km da capital Montevidéu, décadas de cultivo da beterraba açucareira deixaram um rastro de contaminação no solo, nos lençóis freáticos e na saúde de agricultores. Para crescer e se manter na região, a planta precisou de uma série de agrotóxicos, aplicados por empresas uruguaias e estrangeiras.
Hoje em dia, já não se cultiva mais a beterraba nessa região, mas todas as consequências danosas daquele modelo de produção ainda estão presentes na vida da população local. Toda a agricultura local depende de irrigação artificial, porque os fertilizantes químicos fizeram com que o solo perdesse a capacidade de reter a água da chuva.
Em entrevista à Agência Brasil, o coordenador da Red Nacional de Semillas Nativas y Criollas, o uruguaio Marcelo Fossati, denuncia corporações multinacionais por lucrarem à custa da saúde do povo e da contaminação do meio ambiente.
A conversa aconteceu no campus da Universidade Federal do Pará (UFPA), durante a Cúpula dos Povos. O evento, organizado por movimentos sociais em contraponto à 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), ocorre em Belém.
A rede coordenada por Fossati abrange mais de 250 propriedades familiares e 350 produtores distribuídos pelos departamentos de Montevidéu, Maldonado, Colonia, Paysandú, Cerro Largo, Durazno, Canelones, Rocha, Tacuarembó, Treinta y Tres, Lavalleja, San José, Salto e Artigas. Desde a sua criação, a Rede também inclui a Rede Amigos da Terra – Uruguai – e a Faculdade de Agronomia da Universidade da República.
O principal objetivo da instituição é regatar e valorizar as variedades nativas ou tradicionais de sementes para a produção familiar. Seja para autoconsumo ou para abastecer os mercados locais.
Leia a entrevista completa:
Agência Brasil: Você veio para a Cúpula dos Povos denunciar o uso de agrotóxicos na agricultura uruguaia. Poderia explicar de que forma esses produtos têm impactado a vida da região onde você vive?
Marcelo Fossati: Eu moro em uma região que antigamente era uma área de produção de beterraba açucareira. Nas zonas frias, a cana-de-açúcar não cresce, então, o cultivo energético era a beterraba açucareira. É um cultivo que exige muita aplicação de fertilizantes químicos para produzir e, além disso, não é uma planta desta região — é europeia, da área da Bélgica, da Bulgária, dessas zonas frias. Por isso, aqui, ela sofre com muitos problemas de pragas e doenças.
O cultivo precisava ser muito sustentado por agrotóxicos para se manter. Hoje em dia, já não se planta mais beterraba açucareira nessa região, mas todas as consequências daquele modelo ainda estão presentes: erosão do solo, perda do horizonte fértil, e a consequência mais clara que vemos nós, camponeses e agricultores, é a falta de capacidade de retenção de água no solo.
Agora, quando chove, o solo se lava rapidamente — a água desaparece — porque o agrotóxico destruiu a estrutura do solo. O solo, em si, é uma espécie de esponja cheia de poros, e é nesses poros que a água fica. Mas o produto químico destruiu esses poros, então, o solo perdeu a capacidade de reter água.
Quando chove forte, a água carrega todo o solo fértil para os rios, em vez de permanecer retida ali mesmo. E é essa água no solo que alimenta as plantas. Então, quando falta água no solo, as plantas ficam sem esse alimento, e se torna muito difícil produzir na minha região se você não tiver irrigação. Só com água da chuva é impossível, porque o solo não guarda água e tudo se perde rapidamente.
Agência Brasil: E o uso desses agrotóxicos trouxe algum impacto para a saúde da população?
Marcelo Fossati: Isso está muito claro para nós. Hoje, temos pessoas de 50, 60 anos — filhos da Revolução Verde — que não conheceram outra forma de produzir. A Revolução Verde no Uruguai começou nos anos 1960 e se consolidou nos anos 1970, impondo o modelo do agrotóxico, das sementes híbridas e melhoradas.
Os pais dessas pessoas usavam adubos orgânicos e sementes crioulas [nota da reportagem: as sementes crioulas são todas as possibilidades de multiplicação de vegetais por meio de grãos, ramas, folhas, flores, frutos, raízes e caule].
Mas eles, não. Eles cresceram desde a infância com os agroquímicos, e hoje estão aparecendo muitos casos de câncer no intestino, câncer de pele, câncer de esôfago, problemas respiratórios, problemas na pele pelo contato direto.
Os agrotóxicos chegavam com propaganda dizendo que não faziam mal, que alguém podia até pegar o veneno e misturar com a mão. Esse veneno entrava pela pele lentamente. Na hora, dava só uma pequena coceira ou uma bolha. Mas esse veneno ia penetrando, acumulando-se lentamente, e hoje, aos 50 ou 55 anos, aparecem os problemas.
Havia até propaganda dizendo que você podia beber o agrotóxico sem nenhum problema e que isso ajudaria a limpar o estômago e o aparelho digestivo, como uma forma de “purificar por dentro”. Imagine o que significou esse uso.
E hoje essas pessoas não percebem o risco. Como foram educadas com muita propaganda de que aquilo não era perigoso, perderam a noção de risco. Então, usam o veneno sem nenhum tipo de proteção: sem máscara, sem avental, sem luvas, sem botas.
Muitas vezes, terminam de aplicar o produto em tomate, berinjela ou pimentão, e deixam a roupa usada dentro de casa, com as crianças circulando. Isso gera contaminação ambiental, afetando até quem não está em contato direto com o veneno, mas respira o ambiente contaminado.
Outro problema é a contaminação da água subterrânea. Sete anos atrás, o ensino público fez um estudo nas escolas rurais, analisando a qualidade da água que as crianças tomavam — água subterrânea. Não houve uma única escola, entre 76 amostras, que não apresentasse contaminação por agrotóxicos.
Agência Brasil: E quem são as empresas responsáveis pelo uso de agrotóxicos que você veio denunciar aqui na Cúpula dos Povos?
Marcelo Fossati: São empresas uruguaias, ou melhor, empresas que mantêm nomes uruguaios, mas que já foram compradas por multinacionais. Uma delas se chama Isusa. Outra se chama Proquimur. Elas mantêm os nomes antigos para não associar diretamente os problemas às multinacionais.
Então, quando ocorre uma intoxicação — por exemplo, um avião passa, o vento muda, e as pessoas ficam com bolhas na pele — o problema não é atribuído à multinacional, mas à Proquimur. Mas é a mesma empresa. Ela era uma empresa antiga que vendia guano de morcego [um tipo de adubo natural feito com as fezes do animal].
Agência Brasil: E, já que estamos na COP30, como relacionar os impactos dos agrotóxicos com a emergência climática?
Marcelo Fossati: Há duas relações principais. Primeiro: o agrotóxico não existe na natureza. É um produto de síntese química, que combina diferentes substâncias em uma única molécula. Isso exige enorme gasto de energia. Há estudos dizendo que se gasta mais energia produzindo ureia [fertilizante nitrogenado] do que o trator gasta para aplicá-la.
Esse impacto climático fica invisibilizado. Olha-se para a ureia no rio, para os peixes, mas não se olha para trás — para como essa ureia foi produzida usando petróleo, gasolina e muita energia para condensar várias substâncias em uma única molécula.
Então, existe muito gasto de energia para produzir o agrotóxico, muito gasto de energia para aplicá-lo e muito gasto de energia para transportar a produção. A soja, por exemplo, vai para a China em navios movidos a combustível pesado — litros e litros de combustível, emitindo gases de efeito estufa.
Temos, então: consumo energético para produzir a molécula, consumo energético para aplicar a molécula e consumo energético para distribuir o produto final. O balanço é altamente negativo.
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